segunda-feira, 11 de abril de 2011

Ex-secretário de transportes metropolitanos de São Paulo fala do transporte coletivo versus transporte individual

 
 
 
Cláudio de Senna Frederico, engenheiro, foi vice-presidente da ANTP (Associação Nacional de Trânsito e Transporte Público), ex-secretário de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo (governo Mário Covas). Foi secretário municipal de Serviços e Obras da capital, primeiro diretor de Operações do Metrô do Rio de Janeiro e primeiro gerente de Operações do Metrô de São Paulo.

Qual é a sua avaliação sobre as possibilidades de reversão da prevalência do transporte individual sobre o coletivo?

Cláudio de Senna – Na década de 1970, quando estava no auge a construção, nos Estados Unidos, de auto-estradas, elevados e freeways, que envolviam dinheiro a fundo perdido do governo federal, iniciou-se a construção de um elevado em São Francisco. Entendia-se que, a princípio, esse elevado resolveria os problemas de congestionamento, melhorando a fluidez. Lutando contra a maré, quando todo mundo perseguia o dinheiro federal para fazer os elevados, o então prefeito se posicionou contra o prosseguimento das obras. Hoje, essa postura até seria bem aceita, mas na época causou estranhamento e enfrentou forte oposição. Pressionado durante uma audiência por um cidadão que alegava que, sem a conclusão do elevado, se perderia meia hora a mais no trânsito, o prefeito respondeu que essa meia hora poderia ser aproveitada para se admirar a beleza de São Francisco. Uma brincadeira, é claro, mas que se tornou emblemática já que, prosseguidas as obras, o elevado parcialmente construído acabou ruindo após um terremoto. A partir desse episódio, uma nova avaliação resultou, em vez de sua reconstrução, na opção pela total demolição. Uma postura frontalmente diferente da que predomina aqui, onde, para chegar mais rápido a um destino, justifica-se a destruição de tudo que está no seu percurso, estrutura essa que também será destruída para chegar mais rápido a um outro destino.

É esse tipo de postura que explica o nosso Minhocão, construído na década de 1970? Essa não é uma forma de priorizar a questão do trânsito e do transporte individual em detrimento do investimento em transporte coletivo?

Senna – Exatamente. É a teoria das safenas, de que, em princípio, a solução é provisória, mas acaba se tornando definitiva. E, seguindo essa tendência, a região da Av. Bandeirantes, que já foi uma região nobre e que hoje já é uma região deteriorada, vai se tornar totalmente estéril, vai haver uma esterilização daquilo. Sou adepto de uma teoria antiga, da década de 70, de que o trânsito não é liquido, é gasoso, e ocupa o espaço disponível. Ele ocupará todos os espaços que lhe forem dados, o que irá gerar ainda mais trânsito, que também ocupará o novo espaço. Ao contrário, se o seu espaço for reduzido, ele vai se comprimir, vai se reduzir. Acho, aliás, que congestionamento não tem solução. Temos congestionamento ao longo de duas, de quatro, de doze, ou de trinta faixas. Não haverá não-congestionamento. E qualquer espaço vazio vai induzir um novo trânsito e, dentro de algum tempo, haverá um congestionamento ainda pior.

Então, na sua avaliação, esta política de atendimento irrestrito da demanda está equivocada?

Senna – Sou contra qualquer tipo de atendimento de demanda imediata ou emergencial, particularmente em um país como o nosso. Aqui, tudo o que deveria ser provisório, torna-se definitivo. O controle da demanda começa por você não correr atrás dela, não atendê-la, pois, se correr atrás, induz a cidade a permanecer desse jeito provisório.  Se desistirmos de correr atrás da demanda, teremos tempo e condições de decidir a cidade que queremos, mesmo a custa de não atender demandas de circulação mais imediatas.

Dentro desse quadro, pensar em alternativas do controle da demanda seria uma necessidade?

Senna – Sim. No entanto, é cedo para avaliar os efeitos de nossas tentativas de controle da demanda. Só depois que um projeto atinge sua maturidade é possível avaliá-lo, pois a situação projetada é uma, a resultante é outra. Esse é o caso do rodízio, nós ainda estamos avaliando seus efeitos. Existem cidades que já chegaram lá, não gostaram do resultado e estão reavaliando. Ou seja, ainda estamos lutando com os efeitos e não com as causas.

Há algum exemplo para ilustrar essa tese?

Senna – Em Vancouver, no Canadá, foi montado um projeto de construção de uma nova linha de trem de superfície, que abriu uma região nova, dentro do conceito de nucleação de cidades, em que prevê um intervalo verde entre os núcleos urbanizados. Pois bem, criaram essa linha penetrando uma região ainda não-explorada e, em torno das estações, foi incentivado o adensamento urbano, com prédios mistos, comércio, escritórios, empregos e residências. Os prédios foram implantados bem próximos das estações e praticamente não havia circulação por carro. Mas isso só valia para o primeiro anel, na envoltória da intervenção, no entorno das estações. No segundo anel, intermediário, exigia-se um mínimo de condições urbanas para permitir o adensamento. Atualmente estão querendo, inclusive, mudar a lei, de forma a instituir este conceito invertido, contrário do conceito usual. Lá, o conceito é: deve-se ter garantido um mínimo de requisitos e só então se permite um adensamento, que seja compatível às condições implantadas.

É possível explicar melhor essa relação entre adensamento, condições urbanas e circulação?

Senna – Conceitualmente, funciona assim: determinada região deve apresentar, no mínimo, certo número de elementos por hectare. Se não houver, por exemplo, empregos ou habitações no nível recomendado, não é permitido construir. É a aplicação do conceito invertido, para que essas unidades locais, essas vilas, se configurem como cidades de pedestres. O modelo geral é uma cidade mais expandida, com dois anéis: um anel que se atinge a pé, com trajetos de no máximo 20 a 30 minutos, e um segundo anel, com um transporte público secundário, como ônibus pequenos que permeiam o trânsito local. A partir desse anel intermediário, inibem-se as construções para preservar o verde, praticar atividades próprias de fazenda, produção agrícola.

Estamos falando de outra cultura, outras condições de urbanização, outros custos de infra-estrutura, outra distribuição de renda. Esse modelo seria aplicável aqui?

Senna – Acho difícil imaginar isso aqui hoje. Essas cidades de Vancouver são o que para nós seriam áreas ocupadas por classe média alta. É bastante radical, mas eles decidiram fazer assim. Em outras áreas de Vancouver, que fogem desse padrão, ainda há muita gente que prefere o modelo tradicional. Contudo, eles estão investindo na construção de um novo modelo, a que estão chamando de modelo europeu de urbanização. Em vários locais da Europa, ainda se vêem aquelas cidadezinhas e até animais silvestres. Eles têm outro conceito, que está sendo usado também no Canadá: criam-se corredores verdes unindo as reservas naturais mais significativas. Aqui se equivaleria a unir a Serra da Cantareira, ao norte, com a Serra do Mar, ao sul. Ou seja, cria-se dentro da cidade áreas verdes que vão se emendando através de corredores.

Mas nossa realidade não é outra? Aqui o modelo de concentração de renda é tal que, se deixar desocupado qualquer espaço público, qualquer fundo de vale, ele é imediatamente ocupado e favelizado, comprometendo o próprio ambiente físico.

Senna – Pensando em nossa realidade, percebemos que aquilo é um sonho. Não é compatível com o Terceiro Mundo. Temos um pé no Terceiro Mundo e outro no Primeiro Mundo, mas no Terceiro em grande quantidade. Um ponto de partida para a conquista de uma cidade mais equilibrada seria estabelecer alguns consensos, em torno de uma série de coisas que não deveríamos fazer em hipótese alguma. Por exemplo, não se deve aumentar as faixas da Avenida Bandeirantes nem usar a Avenida Jacu-Pêssego para qualquer coisa que não seja a melhoria dos bairros do entorno. Aliás, em Vancouver quase não se investe em auto-estrada. Investe-se em outras alternativas, como linhas ferroviárias e corredores de ônibus.

Nessa linha de raciocínio, até o Rodoanel torna-se questionável. Como resolver a questão das ligações estruturais?

Senna – O limite para essa questão está no Rodoanel, que tem utilidade, até certo ponto, de isolamento do impacto da mobilidade de mais longa distância, no enfrentamento do problema da carga. Nesse sentido, ele tem uma lógica correta, é uma obra defensável. Mas a maioria dos outros projetos é discutível. Entendo que vários acertos viários devem ser feitos, assim como as pequenas intervenções com função de “acalmar o trânsito”. Medidas como redução das faixas de rolamento, aumento da área de pedestres e construção de estacionamentos. O comércio percebeu isso, intuitivamente, como aconteceu nas ruas Oscar Freire e João Cachoeira, onde foram criados lugares para embarque e desembarque fora da faixa de trânsito, com recuos nas calçadas. São essas coisas que apontam a direção do vento, ou seja, restringir realmente determinadas faixas de rolamento.

E no caso da Avenida Santo Amaro?

Senna – Lá, se tirarmos o corredor de ônibus, a deterioração vai ser mil vezes pior do que a existente. Ela seria ocupada por automóveis congestionados de um ao lado ao outro, o dia inteiro, sem ter onde estacionar. Não seria mais um lugar onde as pessoas possam ir, mas um lugar por onde apenas se pode passar. E mesmo assim, sem êxito, porque estaria congestionada. Em compensação, se mantiver uma faixa de rolamento de cada lado, melhorar a qualidade do corredor de ônibus, melhorar as calçadas e criar recuos em que o motorista possa parar, isso mudará totalmente o perfil da Avenida, dando à região uma oportunidade de recuperação.

Podemos dizer que algumas diretrizes formuladas para os transportes estão em conflito com a criação de uma cidade mais equilibrada?

Senna – É curioso verificar que, anos atrás, a teoria da drenagem, para evitar enchente, era retificar os cursos de água, limpar e aprofundar a calha, para que a água escoasse o mais rápido possível. Só que isso não evitou as enchentes. Hoje se chegou à conclusão que, com os piscinões e outras medidas, temos que conter a água e fazer com que o escoamento se processe mais lentamente. No trânsito a gente pensa ao contrário. Toda vez que se encontra um obstáculo, decide-se destruir os pontos para abrir novas passagens para que o trânsito flua mais rápido. Enquanto a diretriz for privilegiar a fluidez e favorecer a passagem de automóveis, cada vez mais, as pessoas vão ser afastadas. A decorrência direta disso é que as áreas de moradia acabam se deslocando para lugares cada vez mais distantes. Precisamos abandonar essa política de absoluto privilégio da fluidez da circulação dos veículos em detrimento de todas as outras funções urbanas.

O Plano Diretor e a nova Lei de Zoneamento de São Paulo criaram uma figura que se chama Área de Intervenção Urbana, onde se privilegiaria o adensamento e a implantação de atividades de comércio e serviços ao longo dos eixos e no entorno das estações do transporte coletivo de massa. Será acertada essa previsão?

Senna – Esse conceito de área de influência está dentro do utilizado na Austrália, onde se diz que, se essa área envoltória de 200 ou 300 metros tiver mais do que “x” habitações ou atividades geradoras de emprego por hectare, vai favorecer o transporte a pé e o transporte público. Se tiver menos, é inevitável que vá ser dominada por estacionamentos e vias com muitas faixas destinadas ao fluxo de passagem. Essa é uma diretriz inversa ao que usualmente as pessoas defendem, apavoradas com adensamento.

Na Europa também é assim?

Senna – As cidades européias já são claramente favoráveis ao adensamento, mas, claro, que tem de ser priorizado e orientado para as áreas mais providas de infra-estrutura. Aqueles nossos condomínios com ruas tortuosas, que tem tantos defensores e dão ibope, representam a morte do transporte público. O desejável é que tivéssemos um ponto central de transporte público, que permitisse o acesso por trajetos lineares rápidos, à pé, de bicicleta ou, se a área for muito grande, com o uso de transporte secundário, também público.

E como é que isso se aplica a uma rede estrutural de transporte de massa? Esses pontos nodais deveriam estar mais afastados uns dos outros?

Senna – Exatamente. Cito novamente Vancouver, que aplica esse modelo. É como entendo que a cidade deve evoluir. Uma cidade grande deve ser uma reunião de cidades menores, o que, aliás, acontece inevitavelmente, pois uma cidade com 10 milhões de habitantes são 10 cidades com 1 milhão cada. Em Vancouver, há um centro ligado por linhas de trem ou metrô e outros meios de transporte a subcentros situados a certa distância. Estes, por sua vez, estão ligados por subcentros menores. Esses vários níveis se superpõem e formam uma rede. Nos subcentros menores, os deslocamentos são basicamente à pé ou por bicicletas e os subcentros de nível médio dispõem de transporte público secundário e ônibus. Nos maiores centros são utilizados os meios de transporte de massa, e eles se ligam a outros centros. Lá, está se configurando uma grande rede, com características de rede neural, onde existem vários nós: o cérebro, que é um centro importante, e neurônios todos interligados por nós. A cidade precisa gerar concentrações e vazios, não pode ser uniformemente espalhada como manteiga. A zona leste de São Paulo, por exemplo, é uniforme, espalhada, com baixa utilização da terra, do espaço físico e quase nenhuma área livre para lazer, sem preservação do verde, sem condições mínimas de drenagem.

Não dificulta o fato de São Paulo ter uma configuração consolidada, muito segregada, fruto da legislação de uso do solo que segrega as funções urbanas em zonas exclusivas, as residenciais separadas das atividades geradoras de emprego? É difícil pensar em aplicar um modelo de centralidades como o descrito numa cidade que tem um sistema de transporte ancorado no atendimento desses movimentos perpendiculares absurdos.

Senna – Mas é a partir desse sistema de transporte pendular absurdo que devemos criar condições para que ele deixe de existir. Como, por exemplo, implantando um corredor de ônibus circular em torno de São Paulo, que, cruzando com as linhas radiais do metrô e dos trens na zona leste, procure viabilizar o desenvolvimento de uma nova centralidade nessa região. Dessa forma, os centros começam a se deslocar. Não vamos imaginar aqui um esquema ideal como o europeu ou o canadense, mas podemos avançar nesse sentido. Vamos ter que conviver com a cidade preexistente, mas temos de começar a melhorar essa situação. Embora o Projeto Cingapura seja alvo de críticas, seu conceito de habitação verticalizada pode ser entendido como uma tentativa de criar uma ilha de adensamento em áreas já consolidadas, liberando áreas para outras atividades urbanas naquela região. Os problemas do Cingapura são outros. A orientação de que, para resolver o problema habitacional, admite-se que as pessoas ocupem todos os centímetros quadrados do território, é um absurdo, é a morte da cidade. Na zona leste, a solução vai ser a geração de determinados pólos de interesse, que se adensem gradativamente. E que não necessariamente passem só pelo sistema estrutural viário e de transporte. A Avenida Jacu-Pêssego, por exemplo, pode ser aproveitada em algum projeto local de transporte público.

Como está nossa estrutura em comparação com outros países?

Senna – Não somos a Bélgica nem o Canadá, mas não precisamos aceitar placidamente o caos urbano absoluto. Por outro lado, no contexto da América Latina, o Brasil é invejado pela estrutura de transporte público, com empresas de ônibus organizadas, atuação das prefeituras, concessões que funcionam. Apesar de todas as precariedades e erros, o Brasil é único país da América Latina que tem o sistema de transportes estruturado. Não somos a Bélgica, mas também não somos a África. Contudo, podemos chegar a ser. Do ponto de vista do atendimento dos serviços públicos, não alcançamos uma dianteira tão grande a ponto de não temer essa possibilidade. Na África do pós-colonialismo, ocorreu uma reversão no transporte público que atende a periferia. Hoje, lá, cada um compra a sua van e faz o que bem entender. E, no Brasil, temos atração por esse tipo de solução, que gera problemas da utilização indiscriminada das peruas, agravando a informalidade e a desregulamentação.

Uma vez que não se consegue apresentar uma oferta de transporte coletivo que consiga fazer frente a toda demanda reprimida, verifica-se que o morador da periferia da cidade, logo que pode, compra um carro, mesmo que em condições precárias. Não existe aí um conteúdo cultural também?

Senna – Existe. E não se pode dizer que ele está fazendo a opção errada. O erro é social, não individual. Infelizmente, as condições que são dadas às pessoas de baixa renda levam a isso. São Paulo é uma cidade onde, se o cidadão não tiver um carro, não consegue usufruir de muita coisa. E as condições não estão sendo propícias nem mesmo para preservar as regiões que ainda dispõem de boa cobertura de transporte público. Nessas áreas mais bem servidas temos que, o mais rápido possível, parar de forçar a mudança de comportamento e gerar um atendimento público de qualidade. Isso tem de ser feito antes que as pessoas se sintam muito pressionadas e optem pelo transporte individual.

Essa situação reforça a urgência da implantação de um sistema de transporte de massa?

Senna – Sem dúvida. Podemos citar o exemplo de Los Angeles, onde é muito clara essa situação. Concebe-se Los Angeles como o apogeu da cidade do automóvel, mas na sua origem, ela tinha a maior rede de bondes e trens de subúrbio do mundo e foi uma cidade configurada basicamente pelo uso desses meios de transporte. Quando destruíram os bondes e vieram os automóveis, todos os intervalos do território da cidade ainda vazios foram cobertos por uma “camada de bolo” uniforme e pasteurizada. São Paulo e Rio de Janeiro já tiveram estrutura semelhante à de Los Angeles original, com belos sistemas de bonde e trens de subúrbios que moldaram a configuração das periferias de muitas cidades. Com os automóveis, os espaços intermediários foram cobertos pela facilidade que esse meio de locomoção permite, em termos de permeabilidade. Em Los Angeles, desapareceram os aldeamentos do sistema de bonde, com as estações onde havia adensamento comercial e residencial, para se ter um monte de artérias entupidas.

A teoria do “trânsito gasoso” se aplica também à ocupação da periferia de São Paulo?

Senna – Não é só o trânsito que funciona como um gás, a habitação também se espalha solta, sem controle, acompanhando o automóvel, ocupando qualquer espaço que se crie. Depois não se consegue entender porque em São Paulo, que nem sequer está mais crescendo tanto, se vêem tantas regiões fisicamente frágeis e tantos espaços públicos sendo impiedosa e indiscriminavelmente destruídos. Por que não se consegue deter a destruição que está havendo nos limites da cidade, na Serra da Cantareira e no sul, se não é mais uma cidade cuja população esteja em crescimento? O centro está ficando rarefeito, a população está diminuindo e continua se espalhando para as bordas. E não é por conta de aquela borda estar se desenvolvendo. Ao contrário, é um derramamento.

A configuração do sistema de transporte não contribuiu para isso?

Senna – Com certeza. Acredito que um dos nossos maiores problemas está nas opções de transporte adotadas. É por isso que, na época do primeiro PITU, houve tanta ênfase na malha de transporte de massa, de acordo com o modelo canadense que citei. Uma rede que deve apontar para onde devem ser formados os nós e através deles criar uma rede secundária, onde esses nós se interliguem rapidamente. Nessas áreas está o nosso maior potencial de problemas: a reserva de pessoas que ainda não usam carro. Elas estão lá. Precisamos rapidamente criar novas condições para essas pessoas.

No seu entendimento, nossa cultura de transporte público ainda é muito permeada por visão meramente municipal?

Senna – Urge construir uma visão mais ampla do que a restrita ao âmbito do município. Do contrário, desperdiçaremos nossos maiores instrumentos de articulação de longa distância, que são o metrô e a metro-ferroviária, se continuamos a perseguir apenas o adensamento da região mais consolidada de São Paulo.

Em detrimento do acesso a outros locais, como o aeroporto de Congonhas ou o de Cumbica, que não é acessado por nenhuma infra-estrutura importante. Nesse sentido, o PITU (*) não inovou?

Senna – Aliás, Guarulhos não tem nenhum transporte de massa, é a segunda cidade do Estado e continua sendo tratada como uma cidade satélite. A grande diferença que o PITU fez foi considerar, pela primeira vez, o conceito de transporte como um instrumento urbanístico e não como um objetivo em si mesmo. Ele, de certo modo, colocou as pesquisas de origem/destino no seu devido lugar, que passam a não ser mais o modelo determinante do que se deve fazer em transportes, mas apenas uma das informações que se precisa ter. Para decidir sobre a construção de uma linha de metrô, que é um grande investimento, tem-se de saber com que demanda imediata, como é que se vai fazer a mobilização de capital, e tudo o mais, mas isso não deve determinar a decisão final. Partindo dessa visão, as decisões de transportes passam a ser decisões de estratégias urbanas, visando corrigir erros do passado e interromper o processo de deterioração da cidade. Hoje, o estratégico é impedir que pessoas, que moram cada vez mais longe e trabalham na área consolidada da cidade, comprem carros para vir, porque aí é um desastre total. A partir do momento em que as pessoas fogem para lugares mais distantes, acabam gerando necessidades maiores e mais custosas de atendimento de serviços públicos e infra-estrutura urbana. É um circulo vicioso perverso, que dificulta o suprimento de transporte adequado.

Sendo também uma questão cultural, como difundir o lado positivo do transporte público?

Senna – As pessoas que vivem nas cidades são muito rápidas, percebem as vantagens se lhes forrem oferecidas coisas boas, como é o caso do Poupa-Tempo e do metrô. O automóvel soube resolver muito bem a questão do seu financiamento. Se o automóvel não existisse e se fossemos dimensionar hoje o investimento necessário para viabilizá-lo, iríamos nos surpreender com o volume de recursos necessários, muito maior do que aquele de que não dispomos para o transporte público. A única diferença é que o automóvel conseguiu ocultar o custo social envolvido na sua viabilização, o imenso volume de recursos envolvidos não é visível publicamente. Ocultaram-se, inclusive, os gastos em outros setores de atividade que decorrem do uso do automóvel. Por exemplo, podemos dizer que mais da metade dos hospitais públicos são ocupados por problemas decorrentes do automóvel, as atividades da polícia estão em grande parte relacionadas direta ou indiretamente com o automóvel, seja o trânsito, seja o roubo de carro. A própria criminalidade depende desse modo de locomoção individual.

É possível explicar melhor essa idéia?

Senna – Isso significa que toda uma estrutura de custos foi posta “para baixo do tapete” pela indústria automobilística. Ao final das contas, o cidadão paga só um pedacinho do custo gerado pelo carro. Os custos sociais decorrentes da opção pelo automóvel não estão computados no seu preço de venda e essas perdas são socializadas para toda a sociedade. A democracia é um sistema extremamente competente na distribuição de benefícios e incompetente na distribuição de sacrifícios. Ninguém se elege com distribuição de sacrifícios. O transporte público não soube pleitear o mesmo “tapete” para esconder os custos da obra pública. Raciocinando nesses termos, a construção de metrô, por exemplo, não deveria entrar nas contas, entraria somente a operação. Se o ônibus requer uma faixa exclusiva, este custo é da cidade, não do ônibus. Ou seja, uma parte do sistema de transporte coletivo se viabilizaria por meio de um pleito de redução de custos e não por ampliação de recursos.

O que nos leva à questão dos fundos exclusivos para o setor de transportes...

Senna – Os fundos de transporte poderiam garantir receitas, mas é preciso também encontrar formas mais inteligente de apresentar os custos. De qualquer modo, é necessário desobstruir os fundos. Em tese, já teríamos um fundo, cujos recursos viriam da CIDE, que originalmente chamava-se Imposto Verde, com objetivo de usar receitas dos combustíveis para investir em meios de transporte público que agridam menos o meio ambiente. Mas esses recursos acabam entrando na vala comum do orçamento da União e não chegam ao seu destino.

Quais estratégias existem para garantir os recursos para o transporte?

Senna – Seria necessário criar um mecanismo para vinculação de recursos do fundo a ser criado, com garantias para o desenvolvimento de projetos em transportes específicos, predeterminados. Por exemplo, uma parte da CIDE poderia ser usada para garantir empréstimos necessários à construção de 200 km de metrô nos próximos 20 anos em São Paulo. A partir daí, define-se como seria essa linha e divulga-se a decisão para a sociedade. O mesmo se faria com os corredores de ônibus. Da mesma forma que existe um fundo garantidor das PPPs – todo amarradinho, para que não seja possível tirar o dinheiro de lá, porque senão a PPP não se viabiliza – temos que conseguir a vinculação de recursos para o transporte, com garantias de longo prazo, que assegurem que aquele dinheiro vai estar disponível. No mínimo, o transporte público deve ter o mesmo mecanismo da habitação, a garantia de 1% do ICMS. Isso foi criado no governo Quércia e ninguém ousou tirar. É um artifício válido, não fere a lei. Mas é preciso eliminar essa vinculação genérica, onde cabe tudo.

Na sua avaliação, então, o transporte público não se viabiliza apenas com os recursos do usuário? E qual o impacto disso no planejamento do setor de transportes?

Senna – A maior parte do transporte público oferecido hoje está orientada pela lógica da racionalização de linhas ônibus e não por levar as pessoas onde elas precisam ir. Isso é mais barato e elimina de linhas consideradas não-lucrativas. Mas é a morte do transporte público. Se o transporte público não for de qualidade e não atender às necessidades da população, será abandonado. Se obedecer à racionalidade puramente econômica e financeira, também. Temos que viabilizar recursos que não sejam meramente do pagamento de passagens. Devemos esquecer essa bobagem. O transporte público jamais se viabilizará meramente com pagamento de passagens. Dessa forma, a conta não fechará nunca. Precisa haver um dinheiro coletivo, vinculado a projetos de longo prazo.

Como essa garantia se refletiria nos planejamentos estratégicos?

Senna – A partir daí, podemos chegar ao horizonte de 2020 ou 2025 do PITU com um plano global. Garantidos os recursos, o PITU passaria a ser não apenas um projeto, nem um plano genérico, mas um plano articulado. Aquilo que já foi definido estará, de qualquer forma, garantido. Não teremos mais situações de iniciar uma obra e, no meio do caminho, não ter recursos para continuá-la. Ou pior, o administrador de plantão achar uma outra obra mais interessante. A questão central é como usar o transporte público de forma melhor para ter uma cidade melhor. Transporte público não é meramente alternativo ao automóvel. Ele pode gerar uma cidade radicalmente diferente: mais eficiente, democrática, econômica, gastando menos energia, agredindo menos o ambiente. O automóvel é, sem dúvida, muito interessante, mas não é uma alternativa ao transporte público. Ele tem, ou deveria ter, uma outra finalidade: a de ser um veículo de esporte e lazer, não para ser um meio de locomoção. A principal finalidade do transporte público é viabilizar um determinado tipo de cidade.

Como um dos mentores intelectuais da primeira versão do PITU, que ajustes considera mais importantes na atualização do plano?

Senna – O mais importante seria uma ação de maior divulgação do plano, buscar maior apoio da sociedade. É preciso que o PITU seja conhecido, para que as pessoas reclamem politicamente por ele. Precisa haver um esforço muito grande de divulgação e manutenção do plano na opinião pública. Se os moradores de uma determinada região não souberem que existe uma previsão de uma linha de metrô para lá, isso não têm valor político nenhum. E eles vão pedir um aeroporto ou outra coisa qualquer, porque não tiveram o conhecimento da linha do metrô. O principal aspecto seria envolver a participação dos meios políticos, das prefeituras, articular as forças da sociedade, para que o PITU esteja sempre na agenda da cidade. O automóvel tem um apelo muito forte e se transformou numa continuação das residências. Se houver congestionamento, as pessoas acabarão incrementando o carro com equipamentos para aumentar o conforto.  Outro aspecto fundamental é a qualidade dos transportes públicos. A multidão tolera o aperto no metrô porque ele é rápido. Mas não deveria ser assim. O metrô deveria ser mais confortável, com menos pessoas aglomeradas nos horários de pico. O mesmo vale para os ônibus. Para isso, o transporte público não pode obedecer secamente ao mercado que lhe é imposto, pois atende a todos e enfrenta uma realidade muito complexa, numa disputa desigual com os outros modos de transporte.

Que disputa?

Senna – Veja a briga do transporte público com as peruas. Elas fazem o que querem, escolhem dias e horários mais rentáveis, enquanto os ônibus têm que funcionar sempre. O ônibus acaba ficando com o pior e a perua só entra na hora que interessa a ela, obedecendo a uma lei de mercado. O transporte público, no entanto, obedece a uma lei de assistência social, tem uma função social. São coisas de natureza diferente. A permanência desse paradigma representa a deterioração da vida urbana. Se a situação se perpetuar, as cidades são destruídas. A dinâmica determinante não pode ser a do automóvel. Ele é um bem que continuará existindo, mas não pode ditar o modelo de nossas cidades, se as quisermos habitáveis, democráticas e mais equilibradas na relação emprego, moradia, equipamentos e serviços.

(*) PITU é a sigla de Plano Integrado de Transportes Urbanos para 2020, da Secretaria dos Transportes Metropolitanos do Governo de Estado de São Paulo.

Fonte - Secretaria dos Transportes Metropolitanos de São Paulo - Visões da Metrópole - Transporte coletivo x individual
 
 
A lógica rodoviarista
 
 
Há um carro para cada seis habitantes no Brasil, paridade que vem diminuindo a cada ano. O fenômeno do crescimento econômico, do crédito farto - e agora mais caro - e da ascensão da classe média levou a frota brasileira a registrar aumento de 61,3% em uma década, atingindo 32,4 milhões de veículos em 2010. No mesmo período, a população aumentou 12,3%, para 190,7 milhões de pessoas.
Num cálculo mais preciso, o País tem 5,9 habitantes por veículo, incluindo na conta automóveis e comerciais leves (94% da frota total), caminhões e ônibus. Em 2000, a proporção era de 8,4 habitantes por veículo. A vizinha Argentina tem entre 4,5 e 5 habitantes por carro.
Além de maior, a frota brasileira está mais jovem, concentrada e mais lenta nas grandes metrópoles. Dos veículos em circulação, 42% têm até cinco anos de uso. Ainda circulam pelo País 1,3 milhão de veículos com mais de 20 anos, idade que as empresas consideram crítica em termos de manutenção, desempenho e emissão de poluentes.
Estudo concluído na semana passada pelo Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças) mostra que a idade média da frota é de 8 anos e 8 meses. Até 2007, esse indicador estava acima de 9 anos. "A renovação é lenta porque ainda há muitos veículos antigos em circulação", diz Antônio Carlos Bento, conselheiro do Sindipeças. Da frota total, 23% têm entre 11 e 20 anos.
Apenas cinco Estados (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul) concentram 70% dos veículos que rodam pelo território nacional. A expansão para cidades do Norte, Nordeste e Centro-oeste é um fenômeno recente.
Para realizar o estudo anual, o Sindipeças leva em conta o sucateamento que ocorre com a retirada de veículos velhos de circulação, acidentes com perda total e roubos sem recuperação, fatores que não são considerados nos dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), que contabiliza frota muito superior, até porque muitos motoristas não dão baixa nos registros.
"A motorização no Brasil está ocorrendo de forma mais rápida que em outros países emergentes", diz o diretor da consultoria Kaiser Associates, David Wong.
Vilão. O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Cledorvino Belini, vê a modernização da frota como positiva para segurança o meio ambiente, pois carros novos poluem menos por terem sistemas mecânicos mais modernos. A maioria dos automóveis também está saindo de fábrica com motor flex, que incentiva o uso do etanol quando está mais barato que a gasolina.
Hoje, 39% dos veículos que rodam pelo País são multicombustível, participação que era de apenas 2% em 2004. Nesse período, a frota abastecida com gasolina diminuiu de 72% para 52% e a que rodava apenas com álcool caiu de 16% para 5%. Modelos a diesel tiveram participação reduzida de 10% para 4%. O aumento da frota não é acompanhado em ritmo igual por melhorias na infraestrutura, ressalta Wong. Os constantes congestionamentos nas grandes cidades atestam a falta de transporte público e obras viárias, como a ampliação das pistas.
"O que o País precisa é aumentar o transporte de massa, principalmente para as pessoas irem e voltarem do trabalho, o que faria do automóvel uma alternativa, e não o vilão", diz Belini.
Bento, do Sindipeças, concorda que há muito a ser feito, como estradas melhores para atender essa frota, que também é mais internacional. A frota brasileira é composta por 11,3% de veículos fabricados fora do País, contra 8,9% em 2005. "Antes, notadamente a maior parte dos carros importados vinha da Argentina, mas nos últimos anos há crescimento significativo da presença de veículos de outras origens", explica.
Em relação a 2009, o crescimento da frota foi de 8,4%. O segmento de automóveis cresceu 7,9% (25,8 milhões), o de comerciais leves 11,3% (4,78 milhões), o de caminhões 10,1% (1,49 milhão) e o de ônibus 4,6% (331,9 mil).
Outro segmento que tem mostrado fôlego é o de motocicletas, cuja frota passou de 9,4 milhões de unidades, em 2009, para 10,6 milhões, no ano passado.
O Estado de São Paulo - Cleide Silva - 09 de abril de 2011

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